O enigma do espaço-tempo

Certos conceitos estão tão presentes na nossa vida que nós nem sequer paramos para pensar em seu significado. O espaço, por exemplo. Nós não paramos para pensar no espaço porque ele é apenas um vazio, um pano de fundo para todo o resto. Com o tempo é a mesma coisa. 

Só sabemos que ele segue em frente, incessantemente. Mas de onde vem o espaço? O que realmente é o tempo? Se os físicos aprenderam alguma coisa com o objetivo de unificar suas teorias, é que o espaço e o tempo formam um sistema tão surpreendentemente complexo que pode desafiar tudo o que achamos saber.

Durante as primeiras décadas do século 20, Albert Einstein já sabia que o espaço-tempo seria objeto de discussão pelos séculos seguintes. Durante este período, ele formulou sua teoria geral da relatividade, que postula que a gravidade não é uma força que se propaga através do espaço, mas uma característica do próprio espaço-tempo. Quando você joga uma bola para o alto, ela volta para o chão porque a Terra distorce o espaço-tempo em torno dela, de modo que os caminhos da bola e do solo se cruzam novamente. Em carta a um amigo, Einstein contemplou o desafio de fundir a relatividade geral com sua outra ideia, a nascente teoria da mecânica quântica. Isso não apenas distorceria o espaço, mas o desmantelaria. Matematicamente, ele mal sabia por onde começar.

Ainda hoje existem diversas ideias para uma teoria quântica da gravidade, e vários cientistas trabalhando nisso. Porém, estas disputas têm algo em comum: elas dizem que o espaço é derivado de algo mais profundo – uma ideia que rompe com 2.500 anos de compreensão científica e filosófica.

Muita coisa envolvida

Descobrir de onde vem o espaço é uma busca que envolve conceitos como a gravidade, os buracos negros e o emaranhamento quântico. A gravidade não é uma força forte, e quaisquer que sejam os seus efeitos quânticos, ele são ainda mais fracos. Um imã de cozinha demonstra isso claramente. Ele consegue prender um pedaço de papel em uma luta contra a gravidade de toda a Terra. A gravidade é mais fraca que o magnetismo ou que as forças elétricas ou nucleares. Detectar seus efeitos quânticos, portanto, é uma tarefa difícil. A única evidência tangível de que esses processos ocorrem é o padrão da matéria no universo primordial. Os físicos acreditam que ele foi causado, em parte, pelas flutuações quânticas do campo gravitacional.

Os buracos negros são os melhores campos de teste para a gravidade quântica. “É a coisa mais próxima que temos de experimentar”, diz Ted Jacobson, da Universidade de Maryland, nos EUA, em um texto publicado no site da revista Scientific American.

A relatividade geral prediz que a matéria que cai em um buraco negro se comprime sem limites à medida que se aproxima do centro, onde se encontram as misteriosas singularidades. Os teóricos não conseguem extrapolar a trajetória de um objeto além da singularidade, pois sua linha do tempo termina ali (até mesmo falar em “ali” não faz muito sentido, porque o próprio espaço-tempo que definiria a localização da singularidade deixa de existir).

Os pesquisadores esperam que a teoria quântica possa focalizar um microscópio nesse ponto e rastrear o que acontece com o material que entra no buraco negro.

Fora da fronteira do buraco, a matéria não é tão comprimida, a gravidade é mais fraca e, pelo que se sabe, as leis conhecidas da física deveriam continuar valendo – mas não valem. O buraco negro é demarcado por um horizonte de eventos, um ponto sem volta: a matéria que chega até ali não consegue escapar. O problema é que todas as leis conhecidas da física fundamental, incluindo aquelas da mecânica quântica, são reversíveis. Pelo menos em princípio, você deveria ser capaz de reverter o movimento de todas as partículas e recuperar o estado anterior delas.

Um enigma muito semelhante foi colocado no final do século 19. Na época, os estudiosos estavam tentando entender a matemática de um “corpo negro”, idealizado como uma cavidade cheia de radiação eletromagnética. James Clerk Maxwell previu que tal objeto absorveria toda a radiação que incide sobre ele e que nunca poderia chegar a um equilíbrio com a matéria circundante.

“Ele absorveria uma quantidade infinita de calor de um reservatório mantido a uma temperatura fixa”, explica Rafael Sorkin, do Perimeter Institute for Theoretical Physics, em Ontário, no Canadá, no mesmo texto da SA. Em termos térmicos, este objeto teria uma temperatura de zero absoluto. Essa conclusão contradiz as observações de corpos negros da vida real. Seguindo o trabalho de Max Planck, Einstein mostrou que um corpo negro pode alcançar o equilíbrio térmico se a energia radiativa vier em unidades discretas, ou quantas.

Os físicos teóricos tentam há quase meio século alcançar uma resolução equivalente para os buracos negros. Stephen Hawking deu um enorme passo em direção a esta solução na década de 1970, quando aplicou a teoria quântica ao campo de radiação em torno dos buracos negros e mostrou que eles têm uma temperatura diferente de zero.

Como tal, eles podem não apenas absorver, mas também emitir energia. Embora sua análise tenha trazido buracos negros para o campo da termodinâmica, ela aprofundou o problema da irreversibilidade. A radiação de saída emerge apenas fora do limite do buraco e não traz informações sobre o seu interior. Se invertêssemos o processo e colocássemos a energia para dentro, as coisas que entraram lá não sairiam. Nós apenas ganharíamos mais calor.

Não é possível imaginar que o material original ainda está lá, apenas preso dentro do buraco, porque quando o buraco emite radiação, ele encolhe e, de acordo com a análise de Hawking, em última análise, desaparece.

Esse problema é chamado de paradoxo da informação, porque o buraco negro destrói as informações sobre as partículas em movimento que permitiriam o retrocesso de seu movimento. Se a física dos buracos negros é realmente reversível, algo deve levar a informação de volta, e nossa concepção do espaço-tempo pode precisar mudar para permitir que isso seja possível. 

Por trás da cortina do espaço

Mas o que há em um buraco negro? O calor é o movimento aleatório de partes microscópicas, como as moléculas de um gás. Como os buracos negros podem aquecer e esfriar, deduzimos que eles têm “partes”, ou, mais genericamente, uma estrutura microscópica. De acordo com a relatividade geral, a matéria passa pelo horizonte de eventos, mas não pode perdurar lá, então o buraco negro é apenas espaço vazio. Ou seja, as partes do buraco negro devem ser as partes do próprio espaço. Por mais simples que uma extensão de espaço vazio possa parecer, ela tem uma enorme complexidade que não conseguimos ver.

Mesmo as teorias que se propõem a preservar uma noção convencional de espaço-tempo acabam concluindo que algo se esconde por trás desta fachada sem traços característicos. Por exemplo, no final da década de 1970, Steven Weinberg procurou descrever a gravidade da mesma maneira que as outras forças da natureza. Mesmo assim, ele descobriu que o espaço-tempo é radicalmente modificado em suas menores escalas.

Os físicos inicialmente visualizaram e imaginaram o espaço microscópico como um mosaico de pequenos pedaços de espaço. Se ampliassem a escala de Planck, um tamanho quase inconcebivelmente pequeno de 10–35 metros, eles acreditavam que seriam capazes de ver algo parecido com um tabuleiro de xadrez, mas essa ideia já foi descartada por algumas razões.

Por um lado, as linhas de grade de um espaço no tabuleiro de xadrez privilegiariam algumas direções sobre as outras, criando assimetrias que contradizem a teoria da relatividade especial. Por exemplo, a luz de cores diferentes pode viajar em velocidades diferentes – como em um prisma de vidro, que refrata a luz em suas cores constituintes. Considerando que os efeitos em pequenas escalas são geralmente difíceis de ver, as violações da relatividade seriam claras.

A termodinâmica dos buracos negros lança ainda mais dúvidas sobre a representação do espaço como um simples mosaico. Medindo o comportamento térmico de qualquer sistema, é possível contar suas partes, pelo menos em princípio. Se colocarmos energia em um sistema e o termômetro disparar, essa energia deve ter se espalhado sobre comparativamente poucas moléculas. Na verdade, estamos medindo a entropia do sistema, que representa sua complexidade microscópica.

Se você fizer este exercício com uma substância comum, o número de moléculas aumenta com o volume de material: se você aumentar o raio de uma bola de praia por um fator de 10, você terá 1.000 vezes mais moléculas dentro dela. Mas se você aumentar o raio de um buraco negro por um fator de 10, o número inferido de moléculas aumenta apenas por um fator de 100. O número de “moléculas” de que ele é composto deve ser proporcional não ao seu volume, mas à sua área de superfície. O buraco negro pode parecer tridimensional, mas se comporta como se fosse bidimensional.

Esse estranho efeito é chamado de princípio holográfico, uma vez que o buraco negro se comporta como um holograma, se apresentando como um objeto tridimensional, mas se comportando como um sistema bidimensional. Se o princípio holográfico inclui os constituintes microscópicos do espaço e seu conteúdo – como os físicos aceitam amplamente, embora não universalmente – é provavelmente necessário mais do que pequenos pedaços do espaço para construí-lo.

Blocos de construção

A relação entre a parte e o todo raramente é simples assim. Uma molécula de H2O não é apenas um pequeno pedaço de água. A água flui, forma gotículas, carrega ondulações e ondas, congela e ferve. Uma molécula de H2O individual não faz nada disso: esses são comportamentos coletivos. Da mesma forma, os blocos de construção do espaço não precisam ser espaciais. “Os átomos do espaço não são as menores partes do espaço”, diz Daniele Oriti, do Instituto Max Planck de Física Gravitacional, em Potsdam, na Alemanha. “Eles são os constituintes do espaço. As propriedades geométricas do espaço são propriedades novas, coletivas e aproximadas de um sistema feito de muitos desses átomos”.

O que exatamente esses blocos de construção são, depende da teoria. Se considerarmos a gravidade quântica em loop, eles são quanta (menores valores de algumas grandezas físicas) de volume agregado pela aplicação de princípios quânticos. Na teoria das cordas, eles são campos parecidos com os do eletromagnetismo que vivem na superfície traçada por um cordão de energia em movimento – o cordão homônimo.

Na teoria M, que está relacionada à teoria das cordas e pode estar subjacente a ela, eles são um tipo especial de partícula: uma membrana encolhida até um ponto. Na teoria dos conjuntos causais, são eventos relacionados por uma teia de causa e efeito. Em algumas outras abordagens, não existem blocos de construção – pelo menos não em qualquer sentido convencional.

Embora os princípios organizadores dessas teorias variem, todos se empenham em manter alguma versão do chamado relacionalismo do filósofo alemão dos séculos 17 e 18 Gottfried Leibniz. Em termos gerais, o relacionalismo sustenta que o espaço surge de um certo padrão de correlações entre objetos. Nesta visão, o espaço é um quebra-cabeça. Você começa com uma grande pilha de peças, vê como elas se conectam e as junta de acordo.

Se duas peças tiverem propriedades semelhantes, como cor, elas provavelmente estarão próximas. Por outro lado, se elas diferirem fortemente, você tentará separá-las. Os físicos comumente expressam essas relações como uma rede com um certo padrão de conectividade. As relações são ditadas pela teoria quântica ou outros princípios, e o arranjo espacial segue.

Transições de fase entre estados físicos são outro tema comum entre as teorias. Se o espaço é montado, pode ser desmontado também. Então seus blocos de construção poderiam se organizar em algo que não se parece nada com o espaço. “Assim como você tem diferentes fases da matéria, como gelo, água e vapor d’água, os átomos do espaço também podem se reconfigurar em diferentes fases”, diz Thanu Padmanabhan, do Centro Inter-Universitário de Astronomia e Astrofísica da Índia. Nesta visão, os buracos negros podem ser lugares onde o espaço se funde.

O entrelaçamento ancestral

A grande realização desta área nos últimos anos ultrapassou as fronteiras disciplinares: as relações entre as partes do espaço envolvem o misterioso entrelaçamento quântico, a propriedade da mecânica quântica que “amarra” duas partículas, mesmo que elas estejam a anos luz de distância. Um tipo de correlação extra forte, intrínseco à mecânica quântica, o emaranhamento parece ser mais primitivo do que o próprio espaço.

Tradicionalmente, quando as pessoas falam sobre a gravidade “quântica”, estavam se referindo à discrição quântica, às flutuações quânticas e a quase todos os outros efeitos quânticos, mas nunca a um emaranhamento quântico. Isso mudou quando os buracos negros entraram em pauta. Isso porque algo muito interessante acontece quando colocamos partículas emaranhadas e buracos negros na mesma equação. Durante o tempo de vida de um buraco negro, partículas emaranhadas caem lá dentro, mas depois que o buraco evapora completamente, seus parceiros emaranhados ficam do lado de fora, emaranhados com nada.

Mesmo no vácuo, sem partículas ao redor, os campos eletromagnéticos e outros são internamente emaranhados. Se você medir um campo em dois pontos diferentes, suas leituras vão se agitar de forma aleatória, mas coordenada. E se você dividir uma região em duas, as partes serão correlacionadas, com o grau de correlação dependendo da única quantidade geométrica que elas têm em comum: a área de sua interface. Em 1995, Jacobson argumentou que o emaranhamento fornece um elo entre a presença da matéria e a geometria do espaço-tempo – o que equivale a dizer que ela poderia explicar a lei da gravidade. “Mais emaranhamento implica gravidade mais fraca – isto é, espaço-tempo mais rígido”, diz ele.

Várias abordagens à gravidade quântica – sobretudo a teoria das cordas – agora vêem o entrelaçamento como crucial. A teoria das cordas aplica o princípio holográfico não apenas aos buracos negros, mas também ao universo em geral, fornecendo uma receita de como criar espaço – ou pelo menos parte dele. Por exemplo, um espaço bidimensional pode ser encadeado por campos que, quando estruturados da maneira certa, geram uma dimensão adicional de espaço. O espaço bidimensional original serviria como o limite de um reino mais expansivo, conhecido como espaço em massa. E o emaranhamento seria o mecanismo responsável por unir o espaço em um todo.

Em 2009, Mark Van Raamsdonk, da University of British Columbia, deu um argumento elegante para esse processo. Suponha que os campos no limite não estejam emaranhados – eles formam um par de sistemas não correlacionados. Eles correspondem a dois universos separados, sem meios de viajar entre eles. Quando os sistemas se emaranham, é como se um túnel, ou buraco de minhoca, se abrisse entre esses universos, e uma espaçonave pudesse ir de um para o outro. 

À medida que o grau de emaranhamento aumenta, o buraco de minhoca se encolhe, atraindo os universos até que você não falaria mais deles como dois universos. “O surgimento de um grande espaço-tempo está diretamente ligado ao entrelaçamento desses graus de liberdade da teoria de campo”, diz Van Raamsdonk. Quando observamos correlações nos campos eletromagnéticos e outros, elas são um resíduo do emaranhamento que une o espaço.

Muitas outras características do espaço, além de sua contiguidade, também podem estar ligadas ao emaranhamento. Van Raamsdonk e Brian Swingle, agora na Universidade de Maryland, também nos EUA, argumentam que a onipresença do emaranhamento explica a universalidade da gravidade – que afeta todos os objetos e não pode ser filtrada.

Quanto aos buracos negros, Leonard Susskind, da Universidade de Stanford, e Juan Maldacena, do Instituto de Estudos Avançados de Princeton, sugerem que o entrelaçamento entre um buraco negro e a radiação que ele emitiu cria um buraco de minhoca – uma porta de trás no buraco. Isso pode ajudar a preservar as informações e garantir que a física dos buracos negros seja reversível.

Enquanto essas ideias da teoria das cordas funcionam apenas para geometrias específicas e reconstroem apenas uma única dimensão do espaço, alguns pesquisadores procuraram explicar como todo o espaço pode emergir do zero. Por exemplo, ChunJun Cao, Spyridon Michalakis e Sean M. Carroll, todos do California Institute of Technology, começam com uma descrição quântica minimalista de um sistema, formulado sem referência direta ao espaço-tempo ou mesmo à matéria. Se tiver o padrão correto de correlações, o sistema pode ser separado em partes componentes que podem ser identificadas como regiões diferentes do espaço-tempo. Nesse modelo, o grau de emaranhamento define uma noção de distância espacial.

O espaço e o tempo são a base de todas as teorias. No entanto, nunca vemos o espaço-tempo diretamente. Em vez disso, inferimos sua existência a partir de nossa experiência cotidiana. Assumimos que a explicação mais econômica dos fenômenos que vemos é algum mecanismo que opera dentro do espaço-tempo. Mas a lição fundamental da gravidade quântica é que nem todos os fenômenos se encaixam perfeitamente no espaço-tempo. Os físicos precisarão encontrar uma nova estrutura fundamental e, quando o fizerem, terão completado a revolução que começou há pouco mais de um século com Einstein.

Fonte: hypescience.com

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