Metade do gás hidrogênio do universo, há muito desaparecido, foi finalmente encontrado

Quando contemplamos a vastidão do cosmos, somos como detetives cósmicos tentando resolver um mistério intrigante. Por décadas, astrônomos têm enfrentado um enigma desconcertante: ao contabilizar toda a matéria normal do universo — estrelas, galáxias e gases — chegamos a um resultado embaraçosamente incompleto.

Mais da metade da matéria bariônica (não-escura) produzida no Big Bang, há aproximadamente 13,6 bilhões de anos, simplesmente parecia ter desaparecido de nossas observações. Era como se o universo tivesse um bolso secreto onde escondia seus tesouros mais valiosos.

Ilustração mostra o halo de hidrogênio quente ao redor da Via Láctea, abrangendo também as galáxias satélites Grande e Pequena Nuvem de Magalhães. Segundo astrônomos, essa estrutura é muito mais ampla do que se pensava e pode conter hidrogênio suficiente para solucionar o enigma da massa bariônica "desaparecida" do universo. Crédito: NASA/CXC/M.Weiss; NASA/CXC/Ohio State/A Gupta et al. 

Novas medições, no entanto, parecem ter finalmente resolvido este mistério cósmico. A matéria “perdida” foi localizada na forma de hidrogênio ionizado extremamente difuso e invisível, formando um halo ao redor das galáxias muito mais extenso e expandido do que os astrônomos imaginavam anteriormente. É como descobrir que sua casa é muito maior do que você pensava — só que neste caso, estamos falando das moradas cósmicas das galaxias.

Estas descobertas não apenas aliviam um conflito entre observações astronômicas e o modelo mais aceito da evolução universal desde o Big Bang, mas também sugerem que os buracos negros supermassivos no centro das galáxias são mais ativos do que se pensava, lançando gás muito além do centro galáctico — aproximadamente cinco vezes mais longe, segundo a equipe descobriu.

Rastreando a matéria cósmica perdida

“Nossa análise indica que, ao observarmos regiões mais afastadas das galáxias, conseguimos recuperar todo o gás desaparecido”, explicou Boryana Hadzhiyska, pesquisadora pós-doutoral Miller na Universidade da Califórnia em Berkeley e principal autora do estudo. “Para sermos mais precisos, precisamos realizar uma análise cuidadosa com simulações, algo que ainda não completamos. Queremos fazer um trabalho meticuloso.”

“As medições são certamente consistentes com a localização de todo o gás”, acrescentou seu colega, Simone Ferraro, cientista sênior do Laboratório Nacional Lawrence Berkeley e da UC Berkeley, que já havia observado indícios deste extenso halo de hidrogênio ionizado em análises publicadas há três anos.

Os resultados do estudo, co-assinado por 75 cientistas de instituições ao redor do mundo, foram apresentados em recentes encontros científicos, publicados como pré-impressão no arXiv e estão em processo de revisão por pares na revista Physical Review Letters. Hadzhiyska e Ferraro são pesquisadores do Centro Berkeley para Física Cosmológica no Departamento de Física da UC Berkeley, além do Laboratório Berkeley.

Empilhando galáxias para ver o invisível

Embora a ainda misteriosa matéria escura constitua a maior parte — cerca de 84% — da matéria no universo, o restante é matéria normal. Apenas 7% dessa matéria normal existe na forma de estrelas, enquanto o restante é hidrogênio gasoso — majoritariamente ionizado — presente nas galáxias e nos filamentos que conectam essas galáxias em uma espécie de rede cósmica.

O gás ionizado e elétrons associados, distribuídos nessa rede de filamentos são referidos como meio intergaláctico morno-quente que é frio demais e difuso demais para ser visto com as técnicas usuais disponíveis aos astrônomos, permanecendo, portanto ilusivo até agora.

No novo estudo, os pesquisadores estimaram a distribuição do hidrogênio ionizado ao redor das galáxias empilhando imagens de aproximadamente 7 milhões de galáxias — todas dentro de aproximadamente 8 bilhões de anos-luz da Terra — e medindo o leve escurecimento ou brilho da radiação cósmica de fundo causado pelo espalhamento dessa radiação por elétrons no gás ionizado, o chamado efeito cinemático Sunyaev-Zel’dovich.

“A radiação cósmica de fundo está por trás de tudo que vemos no universo. É a borda do universo observável”, explicou Ferraro. “Então, você pode usá-la como uma luz de fundo para ver onde o gás está.”

As imagens de galáxias utilizadas — todas galáxias vermelhas luminosas — foram coletadas pelo Instrumento Espectroscópico de Energia Escura (DESI) no Telescópio Mayall de 4 metros no Observatório Nacional Kitt Peak em Tucson, Arizona O instrumento, construído por uma colaboração sediada no Laboratório Berkeley, está mapeando dezenas de milhões de galáxias e quasares para construir um mapa 3D que abrange o universo até 11 bilhões de anos-luz da Terra, com o objetivo de medir o efeito da energia escura na expansão do universo.

Medições que revelam o invisível

As medições da radiação cósmica de fundo (CMB) ao redor dessas galáxias foram realizadas pelo Telescópio de Cosmologia Atacama (ACT) no Chile, que fez as medições mais precisas até hoje da CMB antes de ser desativado em 2022.

A análise foi realizada em colaboração com Bernardita Ried Guachalla, estudante de pós-graduação na Universidade Stanford; Emmanuel Schaan, cientista do Laboratório Nacional de Aceleração SLAC em Menlo Park; e as equipes DESI e ACT.

Quando pensamos na complexidade dessa pesquisa, é quase como tentar encontrar uma agulha em um palheiro cósmico — exceto que a agulha está espalhada por todo o palheiro em forma de gás tênue, e o palheiro tem bilhões de anos-luz de extensão!

Feedback galáctico e buracos negros mais ativos

Os astrônomos geralmente pensavam que os buracos negros supermassivos no centro das galáxias expeliam gás em jatos de material apenas durante seus anos formativos, quando o buraco negro central está devorando gás e estrelas e produzindo muita radiação. Isso os faz se destacar como o que os astrônomos chamam de núcleos galácticos ativos (AGN), ou quasares.

Se, como sugere o novo estudo, o halo de hidrogênio ionizado ao redor das galáxias é mais difuso, mas também mais extenso do que se pensava, isso implica que os buracos negros centrais podem realmente se tornar ativos em outros momentos de suas vidas.

“Um problema que não compreendemos completamente diz respeito aos AGNs, e uma das hipóteses é que eles ligam e desligam ocasionalmente no que chamamos de ciclo de atividade”, explicou Hadzhiyska.

Os astrônomos referem-se à expulsão de gás e sua subsequente queda de volta ao disco galáctico como feedback que regula a formação de novas estrelas por toda a galáxia. Ferraro, Schaan e seus colegas relataram indícios de feedback mais extenso em trabalhos anteriores em 2020, quando Schaan era pesquisador pós-doutoral no Laboratório Berkeley.

Implicações para a evolução cósmica

O novo trabalho, contudo, incorpora mais galáxias e produz uma medição mais precisa. Trabalhos subsequentes realizados por Ried Guachalla confirmaram as descobertas com a amostra espectroscópica DESI, e conseguiram estudar o gás em galáxias mais próximas, destacando que o gás não está distribuído uniformemente ao redor delas, mas segue os “filamentos cósmicos” que permeiam o universo.

Hadzhiyska observou que as simulações atuais de evolução galáctica precisarão incorporar este feedback mais vigoroso em seus modelos. Alguns novos modelos já estão fazendo isso para produzir simulações mais robustas, em melhor concordância com os novos dados.

A identificação da matéria “perdida”, ou bárions, no universo também tem implicações para outros aspectos da evolução cósmica.

“Saber onde o gás está tornou-se um dos fatores limitantes mais sérios na tentativa de extrair cosmologia de pesquisas atuais e futuras. Meio que batemos nessa parede, e este é o momento certo para abordar essas questões”, afirmou Ferraro. “Uma vez que você sabe onde o gás está, pode perguntar: ‘Qual é a consequência para problemas cosmológicos?'”

Desafios aos modelos tradicionais

Para começar, a expulsão de gás dos núcleos dessas galáxias massivas desafia a suposição de que o gás segue a matéria escura, disse Hadzhiyska. Subestimar essa expulsão de gás pode introduzir inconsistências nos modelos cosmológicos, enquanto os novos resultados podem realmente resolver algumas questões sobre o quão irregular é o universo. 

“Há um enorme número de pessoas interessadas em usar nossas medições para fazer uma análise muito completa que inclui este gás”, ela disse. “As pessoas na astronomia se importam muito com isso para entender a formação e evolução das galáxias.”

A técnica utilizada pela equipe, o efeito cinemático Sunyaev-Zel’dovich, também poderia ser usada para investigar o universo primitivo, afirmou Hadzhiyska. Isso poderia fornecer insights sobre a estrutura em larga escala do universo e as leis da física no universo primitivo, além de permitir aos cientistas testar a gravidade e a relatividade geral.

Quando contemplamos estas descobertas, não podemos deixar de nos maravilhar com a grandiosidade do cosmos. Como um grande quebra-cabeça cósmico, cada peça que encontramos nos aproxima de compreender o quadro completo do universo. E esta descoberta, sem dúvida, representa uma das peças mais significativas que colocamos no lugar nos últimos anos.

Hypescience.com

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