O que um evento astronômico em 1054 nos ensinou sobre a morte de estrelas

Na coluna "Mulheres das Estrelas", as astrônomas Ana Posses, Geisa Ponte e Duilia de Mello contam o que a humanidade desvendou nos últimos séculos sobre explosões estelares

Nebulosa do Caranguejo, registrada pelo telescópio Hubble em 2005 (Foto: NASA, ESA, J. Hester and A. Loll (Arizona State University))

A história de vida de uma estrela depende bastante da sua massa. Quanto mais massiva, mais rápido ela vai esgotar seu combustível e mais violenta será sua morte. Há cerca de 967 anos, a humanidade testemunhou um adeus estelar que pode ter sido o mais intenso na nossa vizinhança até hoje. No ano de 1054, chegou à Terra o brilho do último suspiro de uma estrela gigante. Ela brilhou tão violentamente durante a explosão em supernova que chamou a atenção de muita gente naquela época. O telescópio sequer havia sido inventado! 

Os relatos descrevem o surgimento súbito de uma estrela “nova” muito brilhante, mais do que todos os outros objetos celestes visíveis, com exceção da Lua. Esse brilho durou quase dois anos, podendo ser observado a olho nu de vários lugares do planeta. Hoje temos noção disso graças a antigos astrônomos chineses e árabes que tiveram o privilégio de testemunhar o fenômeno e registrar a evolução de seu brilho. 

Vários séculos depois, na década de 1920, já com telescópios, alguns astrônomos encontraram uma nebulosa planetária (o resto mortal de uma estrela) que recebeu o nome de Nebulosa do Caranguejo, já que sua aparência lembra o crustáceo. Ela é muito bonita e, naquela época, o astrônomo americano John Charles Duncan viu que ela se expandia ao analisar imagens tiradas durante oito anos. Calculando há quanto tempo essa expansão estava acontecendo, ele concluiu que a explosão que deu origem à nebulosa acontecera cerca de 900 anos antes, justamente nas coordenadas que eram descritas na antiga observação da supernova em 1054. 

Esse foi o primeiro reconhecimento de uma nebulosa planetária que tinha sido originada por uma supernova — testemunhada e registrada por astrônomos séculos antes. Na verdade, de nova a estrela de 1054 não tinha nada! Supernovas são eventos raríssimos, ainda mais na nossa vizinhança galáctica. A última supernova vista na Via Láctea foi a de Kepler, em 1604. 

Pulsar PSR B1919+21, descoberto em 1967 por Jocelyn Bell Burnell (Foto: NASA/Reprodução Facebook @Nobel Prize)

Nas redondezas da linda imagem astronômica da Nebulosa do Caranguejo, vemos nuvens de gás e poeira emitindo ondas eletromagnéticas em vários comprimentos de onda (ou cores) diferentes. Essa região é composta pelo material que fazia parte das camadas mais externas da estrela que morreu. Durante uma explosão de supernova, a estrela expele esse material e alguns átomos se combinam formando novos elementos químicos. Esse fenômeno acontece de forma única em cada estrela gigante que explode, dando aparência de “cores”, texturas e formatos particulares em cada nebulosa planetária que observamos. 

Já no centro da Nebulosa do Caranguejo vemos o que restou do núcleo da falecida estrela. Ali está uma estrela de nêutrons, um corpo de densidade tão alta que os prótons se combinaram com os elétrons formando os nêutrons. Estimamos que a massa da estrela de nêutrons seja por volta de 1,4 a massa do Sol, mas ela é bem pequenininha, não chegando a 30 km de diâmetro (sim, bem pequenininha, lembrando que o Sol tem 1,4 milhão de km). 

A estrela de nêutrons do Caranguejo é do tipo que chamamos de pulsar. Ela está em rotação e possui campo magnético intenso que produz corrente elétrica na superfície estelar. Essas partículas carregadas entram no campo magnético e giram com ele ao redor da estrela de nêutrons. Ao atingirem velocidades próximas à da luz, a estrela libera radiação eletromagnética. Como o polo magnético não coincide com o de rotação, feixes de luz escapam pelos polos durante a rotação. O efeito visto da Terra é semelhante ao de um farol, daí o nome pulsar. 

O pulsar da nebulosa do Caranguejo foi descoberto em 1968 pelo astrofísico estadunidense Richard Lovelace, no rádio-observatório de Arecibo, em Porto Rico. O primeiro pulsar, PSR B1919+21, tinha sido descoberto há apenas um ano pela estudante de doutorado Jocelyn Bell Burnell, em Cambridge, no Reino Unido. Já comentamos sobre o caso de Jocelyn, que não recebeu o prêmio Nobel de Física por sua descoberta — a láurea foi dada a seu orientador, Antony Hewish, em 1974. Apesar da injustiça, a astrônoma é sempre aclamada por seu feito e contribuição científica ao detectar sinais que se repetiam a cada 1,337301 segundo, hoje conhecidos como o pulsar PSR B1919+21. 

Na interpretação deste artista, os fundamentos de um pulsar são codificados por cores. Em branco está a estrela de nêutrons. Seu poderoso campo magnético é mostrado em azul. Os polos norte e sul desse campo magnético e as direções das quais os feixes do p (Foto: B. Saxton, NRAO/AUI/NSF)

O período de rotação dos pulsares pode chegar a apenas frações de segundos e até ultrapassar dezenas de segundos. Por exemplo, o da nebulosa do Caranguejo gira 33,5 vezes por milissegundo (0.001s); ao passo que um dos mais lentos de todos, o PSR J0250+5854, gira a cada 23,5 segundos. 

Recentemente, com as variações de brilho da estrela supergigante Betelgeuse na constelação de Orion, surgiu a esperança de que talvez fôssemos testemunhas de outro evento raríssimo parecido com o que aconteceu em 1054. Com a diferença de que Betelgeuse está cerca de 10 vezes mais próxima do que estava a estrela moribunda que deu origem à Nebulosa do Caranguejo, a 6.500 anos-luz de distância. Imagine então o espetáculo que será quando Betelgeuse explodir. 

Sabemos que a explosão de 1054 foi tão fantástica que seus desenhos figuram em uma série de petróglifos no deserto dos Estados Unidos. Muitos chegam a confundir a supernova com desenhos do Sol, mas, ao examinar detalhadamente o mapa do céu deixado pelos indígenas americanos e ao analisar a datação desses sítios, tudo indica que o desenho é de um objeto superbrilhante no céu, possivelmente a supernova 1054. 

A estrela supergigante vermelha Betelgeuse durante o seu escurecimento no final de 2019 e início de 2020 (Foto: ESO/M. Montargès et al.)

Não sabemos exatamente o impacto que a explosão de Betelgeuse, que está tão próxima, terá na vida das pessoas no nosso planeta. Mas hoje, com toda a tecnologia disponível, com certeza faremos mais do que desenhar a estrela em paredes e será uma excelente oportunidade para falar de ciência com todo mundo. Será uma estrela revelando como estamos todos conectados com o passado e o futuro, e ficaremos aguardando com muita ansiedade pelo pulsar que nascerá no coração da futura nebulosa, girando incessantemente por milhares de anos.

Fonte: GALILEU

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