Lupas cósmicas

Distorção gravitacional na luz de supernovas e de galáxias ajuda a investigar a distribuição de matéria e energia no Universo

Físicos do Rio de Janeiro, com colegas do exterior, estão dominando a arte de usar um fenômeno especial que ocorre com a luz para entender a composição e a estrutura do Universo em grandes escalas. Chamado de lente gravitacional, esse fenômeno funciona como uma espécie de lente de aumento gigantesca – uma lupa cósmica – e permite enxergar objetos celestes que muitas vezes não seriam visíveis por estarem muito distantes. Com a ajuda de lentes gravitacionais, Martín Makler, Bruno Moraes e Aldée Charbonnier, do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF), elaboraram um novo mapa da matéria escura, um dos componentes mais abundantes e misteriosos do cosmo. “Esse é o levantamento mais extenso do tipo já feito com boa qualidade de imagem para uma área contígua do céu”, afirma Makler, coordenador da participação brasileira no projeto, realizado em parceria com pesquisadores europeus, canadenses e chineses. Os pesquisadores usaram um telescópio no Havaí para examinar inicialmente 16 milhões de estrelas e galáxias em uma faixa do equador celeste, área do céu bastante estudada por ser visível a partir do hemisfério Norte e do hemisfério Sul da Terra.

Com base em dados de quase 3 milhões de objetos dos quais conseguiram informações detalhadas, eles criaram um mapa bidimensional da distribuição de matéria escura numa faixa do equador celeste distante cerca de 7 bilhões de anos-luz da Terra. A quantidade de matéria escura encontrada nas galáxias dessa região do céu é de cinco a seis vezes mais abundante do que a de matéria normal, que compõe estrelas, planetas e seres vivos. “Cerca de 80% da matéria nessas estruturas que funcionam como lente gravitacional é matéria escura”, explica Makler. Essa é uma proporção consistente com a observada em outras análises de grande escala do Universo.

Segundo os pesquisadores, esse resultado é compatível com o previsto no modelo mais aceito atualmente para explicar o comportamento do Universo desde o Big Bang, há 13,8 bilhões de anos, até hoje: o lambda cold dark matter, ou lambda CDM. Esse modelo propõe que pouco menos de 70% de tudo (energia e matéria) o que compõe o Universo corresponde à chamada energia escura, uma forma desconhecida de energia que parece ser latente do espaço vazio. Cerca de um quarto do cosmo seria composto de matéria escura, formada por partículas que não emitem nem absorvem luz, e os 5% restantes pela matéria normal.

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“Pode não parecer grande coisa corroborar o modelo aceito como padrão atualmente”, diz Makler, “mas é preciso levar em conta que esse é um prelúdio do que está por vir, uma vez que novos projetos vão examinar áreas muito maiores do céu e com qualidade de imagem semelhante à nossa”. O pesquisador do CBPF conta que, para a faixa do céu agora mapeada, faltava um levantamento de alta resolução que permitisse olhar detalhes. “Foi o que decidimos fazer: o maior levantamento de uma área contígua do céu com essa resolução”, conta.  Do ponto de vista técnico, foi um desafio considerável. Por não interagir com a luz, mas apenas com a matéria comum por meio da gravidade, a presença da matéria escura foi inferida por meio da distorção que causa na trajetória da luz de galáxias distantes – o efeito de lente gravitacional, que pode variar de intensidade de acordo com a distribuição de massa entre as galáxias que sofrem esse efeito e os observadores na Terra.

Relatividade

As lentes gravitacionais estão entre os muitos efeitos previstos pela teoria da relatividade geral, formulada pelo físico alemão Albert Einstein (1879-1955). Einstein mudou a forma de se compreender a gravidade ao mostrar que o espaço e o tempo são maleáveis – em especial sob a ação de objetos de grande massa, como estrelas, galáxias ou aglomerados de galáxias. Séculos antes, Isaac Newton havia explicado a gravidade como uma força atrativa que um corpo de determinada massa exerce sobre outro. O que, com base nas ideias de Newton, se entende como a atração gravitacional e, por exemplo, faz a Terra girar em torno do Sol, a partir de Einstein passa a ser entendido simplesmente como resultado da curvatura do espaço criada pela massa solar, como se a estrela fosse uma bola de boliche colocada em cima de um colchão.

Se o espaço é distorcido por objetos com massa muito elevada, isso significa que a luz também pode acabar sendo curvada ao passar por essa região do espaço. Uma das consequências da mudança na trajetória da luz ao passar por essa região é que a imagem de um objeto mais distante pode ser ampliada (ver infográfico).

Na prática, coisas bem mais complicadas podem acontecer. “A imagem também pode ser duplicada, esticada e distorcida, entre outros fenômenos”, explica o físico Miguel Quartin, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), que vem usando o efeito de lente gravitacional para estudar as supernovas, explosões estelares que estão entre as principais “réguas” usadas para medir a expansão acelerada do Universo. Mesmo as lentes gravitacionais podem apresentar intensidades diferentes e serem fortes ou fracas. A versão forte do fenômeno, na qual há, por exemplo, a forte distorção e ampliação da imagem, só acontece se o objeto que atua como lente tiver massa muito elevada e houver um alinhamento muito bom entre ele, o observador na Terra e a fonte de luz (a galáxia mais distante cuja forma é distorcida).

Já na versão fraca é preciso levar em conta distorções bem mais leves, geradas pela somatória da influência gravitacional de objetos em torno da região que está sendo observada. “Nesse caso, a distorção pode ser muito sutil”, diz Makler, do CBPF. Se os efeitos de lentes gravitacionais obtidos pelos físicos do CBPF representam uma promessa de diminuir algo da aura de mistério em torno da matéria escura, os estudos conduzidos na UFRJ pela equipe de Miguel Quartin estão mais diretamente relacionados a um componente do cosmo ainda mais enigmático, a energia escura. Uma das principais ferramentas usadas para medir a intensidade da energia escura, que funciona como uma espécie de antigravidade repelindo os objetos e fazendo o Universo expandir de forma acelerada, são as supernovas do tipo Ia.

Brilho de mil sóis

Na UFRJ, Quartin, Tiago Castro e Valerio Marra, em colaboração com um pesquisador da Alemanha, mostraram recentemente que é preciso levar em conta o efeito das lentes gravitacionais para estudar essas supernovas. Embora surjam de cadáveres de estrelas de pequeno porte, as anãs brancas, provável destino do Sol daqui a 7 bilhões de anos, as supernovas liberam quantidades prodigiosas de energia. O brilho avassalador emitido na explosão de uma supernova funciona como uma excelente vela-padrão e vale como uma espécie de marcador de página cósmico. Isso ocorre porque as supernovas Ia emitem um brilho de intensidade conhecida e estável. Sabe-se, além disso, que a intensidade aparente de uma fonte de luz diminui à medida que aumenta a distância entre ela e o observador – na realidade, a intensidade aparente de uma fonte de luz diminui na proporção do inverso do quadrado da distância entre essa fonte de luz e o observador.

Com isso, é possível calcular a distância entre a luz e quem a enxerga. Ao mapear a presença desse tipo de supernova Universo afora, é como se os astrônomos estivessem olhando para uma sucessão de postes de luz ao longo de uma estrada, com as luzes mais fracas indicando os pontos mais distantes. No caso do cosmo, porém, há ainda o fato de que a estrada está espichando. Isso fica claro quando se leva em conta outro fenômeno, o chamado desvio para o vermelho, que é o equivalente óptico da distorção do som de uma sirene quando uma ambulância está se afastando rapidamente de alguém. Assim como as ondas sonoras são distorcidas pelo movimento, as ondas de luz emitidas por uma estrela que está se afastando da Terra também têm seu comprimento alterado da perspectiva do observador, tornando-se mais próximas da cor vermelha. A comparação entra a distância inferida por meio das velas-padrão e o desvio para o vermelho é um dos principais indícios de que o Universo está se expandindo e de forma acelerada, impulsionado pela energia escura.

Quartin lembra, no entanto, que a regra aparentemente simples de estimar a intensidade da luz das supernovas raramente é suficiente para que esses objetos funcionem como bons marcos da expansão cósmica. Os problemas que interferem na intensidade observada das supernovas vão de coisas prosaicas, como nuvens de poeira interestelar entre a supernova e a Terra, que fazem o objeto parecer menos brilhante do que é, a distorções na intensidade da luz causadas pelas lentes gravitacionais. Em trabalhos recentes, Quartin e seus colegas utilizaram modelos da distribuição de matéria no cosmo para corrigir a interferência desses fenômenos, entre eles as lentes gravitacionais e a luz das supernovas. “A ideia também foi dar um passo além e ver se, com as supernovas e as lentes gravitacionais, seria possível entender algo mais sobre a estrutura do Universo e sobre como a matéria está distribuída nele”, diz Quartin.

Aplicando essa proposta a quase 700 supernovas Ia – algumas das quais emitiram a luz observada agora quase 8 bilhões de anos atrás –, a equipe da UFRJ verificou que, de fato, isso é possível. “É o primeiro resultado de uma nova técnica, que concorda com o que se sabe a partir de outros métodos”, diz Quartin. “O importante é que, na hora do ‘vamos ver’, a técnica passou no teste. Ele ressalta que, nos próximos 10 anos, em vez de 700 supernovas, serão cerca de 100 mil com dados disponíveis para esse tipo de estimativa. Aí sim será possível chegar a níveis elevados de precisão e descobrir se as informações derivadas dessa metodologia alteram o que se sabe sobre a matéria e a energia escura. “Se as metodologias concordarem, ótimo; se discordarem, é porque alguma hipótese está errada e se conseguiu achar essa inconsistência ao analisar o mesmo fenômeno com técnicas diferentes”, explica. “É assim que a ciência avança.” A esperança é de que avanços desse tipo tragam pistas sobre a natureza desses dois componentes do cosmo, que, por ora, só podem ser investigados com base nos efeitos que produzem.
Fonte: Pesquisa Fapesp

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