As janelas da Via Láctea
Regiões do espaço com menos gás e poeira permitem observar estrelas do outro lado da galáxia
Grupo internacional de astrônomos observou diretamente estrelas do braço Carina-Sagitário, localizado na parte superior esquerda desta representação artística da Via Láctea R. Hurt / JPL-Nasa / Caltech / ESO
AVia Láctea, a galáxia na qual
se encontram o Sol e seus planetas, é um gigantesco aglomerado de gás, poeira e
algo entre 100 bilhões e 400 bilhões de estrelas, unidos pela gravidade. Os
astrônomos a descrevem como uma galáxia espiral, com uma região central mais
volumosa – o bojo, em forma de bola de futebol americano – da qual emergem
braços curvos, longas faixas de estrelas, orbitando o centro galáctico. Os
próprios astrônomos, no entanto, têm dúvidas sobre a estrutura da Via Láctea.
O gás e a poeira acumulados em seu interior dificultam ver os
componentes mais próximos do centro ou situados além dele (ver ilustração
acima). Não se sabe, por exemplo, se no bojo há mesmo um adensamento de
estrelas com o aspecto de uma barra, comum em galáxias espirais, nem se, no
caso da Via Láctea, essa barra é dupla e assume os contornos de um X. Também se
debate há algum tempo se as estrelas do disco, a região delgada ao redor do
bojo, estariam agrupadas em dois ou quatro braços principais.
Algumas dessas questões, importantes para conhecer como a galáxia se
formou e pode evoluir, devem começar a ser respondidas nos próximos anos graças
à descoberta recente de algumas raras e diminutas regiões do céu na direção do
disco galáctico com baixa concentração de gás e poeira. Conhecidas como janelas
de baixa extinção, essas regiões absorvem pouca luz das estrelas que ocultam e
deixam a maior parte de sua luminosidade chegar à Terra. São como as áreas
limpas de um vidro muito sujo e estão permitindo aos telescópios captar a luz
emitida por estrelas do outro lado da galáxia.
Em um artigo publicado on-line em fevereiro na revista Monthly Notices
of the Royal Astronomical Society, o astrônomo brasileiro Roberto Kalbusch
Saito, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), descreve o que
observou ao olhar através de uma janela de baixa extinção especial, a
WIN1733-3349, situada em direção ao centro da Via Láctea.
Apelidada de janela de Oscar, ela foi identificada em 2018 pelo
astrônomo chileno Oscar González, pesquisador do Centro de Tecnologia de
Astronomia, em Edimburgo, na Escócia. González é um dos colaboradores de Saito
no projeto Vista Variables in the Via Lactea (VVV), que utilizou um telescópio
no Chile para mapear quase 1 bilhão de estrelas na região central da galáxia. A
janela descoberta pelo astrônomo chileno ocupa uma área relativamente modesta
no céu, equivalente à de uma lua cheia, assim como algumas das quase 10 janelas
conhecidas.
A de Oscar, porém, tem uma importância singular para os astrônomos por
ser a mais próxima do centro galáctico e situar-se no mesmo plano que o disco.
“Se houvesse condições de observação perfeitas, essa posição nos permitiria ver
toda a parte do disco situada além do centro da galáxia”, afirma Saito.
Ainda não se enxergou tão longe, mas aparentemente já se conseguiu ver o que há do lado de lá. Em um mapeamento de estrelas feito pelo VVV, Saito procurou aquelas localizadas no rumo da janela de Oscar. Ele identificou três grupos de gigantes vermelhas, estrelas de brilho bem conhecido usadas no cálculo de distâncias na galáxia. O primeiro e mais próximo estava a 24,5 mil anos-luz do Sistema Solar, na parte em que o disco se funde com o bojo; o segundo agrupamento encontrava-se a 32,5 mil anos-luz, no interior do bojo; e o último a 44,8 mil anos-luz, do outro lado da galáxia. “Através dessa janela, vimos estrelas do disco galáctico, do bojo e também do braço espiral do outro lado da Via Láctea”, conta o astrônomo argentino Dante Minniti, da Universidade Andrés Bello, no Chile.
Coautor do estudo atual e coordenador do VVV, Minniti
encontrou anos atrás outra dessas janelas, a WIN 1713-3939, ou janela de Dante,
também próxima do centro galáctico.
Essas janelas, segundo o astrônomo argentino, devem tornar possível
mapear diretamente os braços espirais localizados no disco do outro lado da
galáxia, os chamados antípodas galácticos, e desfazer dúvidas que duram
décadas. Em meados dos anos 1920, observações feitas pelo astrônomo
norte-americano Edwin Hubble (1889-1953) indicaram a existência de outras
galáxias além da Via Láctea. Hubble propôs ainda um sistema que as classificava
segundo a forma. Nas décadas seguintes, vários grupos se dedicaram a realizar
levantamentos de estrelas e caracterizar a estrutura da Via Láctea.
Os modelos matemáticos usados para predizer a estrutura da galáxia –
com dois ou quatro braços – se baseiam, porém, em dados obtidos quase sempre de
modo indireto. Uma parte das informações vem do mapeamento das nuvens de gás
espalhadas pela galáxia, um indicativo de onde pode haver estrelas. A outra
parte deriva do mapeamento das estrelas situadas no mesmo hemisfério galáctico
que o Sistema Solar. Essa distribuição de astros é depois projetada para a
outra metade do disco, supondo que ele seja simétrico. “Muito pouca informação
resulta da observação direta de estrelas situadas além do centro da galáxia”,
explica Saito.
Com base na observação direta de estrelas por meio da janela de Oscar e
de duas outras mais distantes do centro galáctico, igualmente situadas no plano
do disco, Saito e Roberto Kammers, que fez mestrado sob a orientação do
astrônomo catarinense, analisaram a distância e o movimento de estrelas
localizadas além do bojo. Ainda não publicados em um periódico científico, os
resultados sugerem que estejam vendo um braço do disco no outro lado da
galáxia. “Várias informações indicam que estamos observando o braço espiral
mais interno localizado além do bojo, o Carina-Sagitário”, conta Saito.
Outro trabalho realizado por Saito e Minniti, com a colaboração de
Kammers, analisou a distribuição de estrelas do bojo observadas no levantamento
VVV e concluiu, segundo artigo recentemente submetido para publicação, que o
centro da Via Láctea abriga uma barra dupla, em forma de X, como havia sido
proposto pela astrônoma italiana Manuela Zoccali e pelo astrônomo norte-americano
Andrew McWilliam em 2010.
Por meio das janelas de baixa extinção, os astrônomos esperam
caracterizar melhor a estrutura da Via Láctea. “O estudo é importante para
aprimorar os modelos que indicam quantas estrelas existem na Via Láctea e como
estão distribuídas e também para aperfeiçoar os modelos de evolução da
galáxia”, comenta o astrônomo Hélio Perottoni, que realiza estágio de
pós-doutorado na Universidade de São Paulo e é especialista em estrutura da Via
Láctea.
Fonte: Revistapesquisa.fapesp.br
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