Um velho problema sobre a medição da composição química do universo foi resolvido

Uma investigação levada a cabo por uma equipe científica da Universidade de Heidelberg, do IAC (Instituto de Astrofísica das Canárias) e da UNAM (Universidade Nacional Autónoma do México) permitiu-lhes resolver a discrepância de abundância, um enigma com mais de 80 anos, acerca da composição química do Universo. 

Os investigadores descobriram que o efeito das variações de temperatura nas grandes nuvens de gás onde as estrelas nascem levou à subestimação da quantidade de elementos pesados no Universo. Os resultados foram publicados na prestigiada revista Nature. 

Imagem da Nebulosa do Crescente (NGC 6888), uma nebulosa em anel associada a uma estrela galáctica Wolf-Rayet, na qual foram observadas variações significativas de temperatura no gás que contém. Crédito: Daniel López/IAC 

Todas as estrelas nascem, vivem e morrem e, de certa forma, isto rege a existência da vida. Numa fase inicial, toda a matéria do Universo era constituída por hidrogénio e hélio (os dois elementos químicos mais simples), com uma pequena quantidade de lítio. Os restantes elementos, como o carbono e o oxigénio, essenciais para os seres vivos, foram formados posteriormente, através de diferentes processos relacionados com a evolução e com a morte das estrelas. É isto que está por detrás da conhecida frase "somos feitos de poeira das estrelas".

Entre as fases de morte estelar e o nascimento de novas estrelas, a matéria acumula-se em enormes nuvens de gás que são iluminadas pelas estrelas recém-nascidas. As nuvens mais próximas das estrelas são chamadas regiões HII; a Nebulosa de Orionte é a mais conhecida. A luz que estas regiões emitem pode ser observada mesmo a partir das galáxias mais distantes, e são de importância fundamental para traçar a formação estelar e para determinar a composição química do Universo. No entanto, as diferentes formas de estudar as regiões HII levaram a resultados discrepantes nos últimos 80 anos.

A descoberta da estrutura do átomo foi necessária para fazer grandes progressos na descoberta da estrutura e da composição do Universo utilizando a espectroscopia. Esta técnica, que permite analisar a composição química da matéria através da dispersão da luz, dá-nos informações sobre a proporção dos elementos químicos, as suas temperaturas, densidades, velocidades, etc. Este "código de barras" é composto por linhas e cada linha está associada a diferenças de energia que são únicas para um determinado elemento, de acordo com a composição e as condições físicas da fonte de luz.

No entanto, desde 1942, verificou-se que, para o mesmo átomo, as linhas brilhantes produzidas por colisões entre o átomo e o eletrão circundante (linhas excitadas por colisão) produzem abundâncias que são cerca de metade dos valores obtidos a partir de linhas que são produzidas pela captura de eletrões (linhas de recombinação). Assim, a determinação de qual é o valor correto para as abundâncias dos elementos químicos numa nebulosa tem sido um quebra-cabeças para muitos astrónomos durante mais de oito décadas.

Uma nova perspetiva

Durante este longo período de tempo, foram propostas várias hipóteses para explicar a discrepância. Uma das mais notáveis foi sugerida em 1967 por Manuel Peimbert, investigador da UNAM e coautor do presente artigo. De acordo com este astrofísico, o brilho das linhas excitadas por colisão depende fortemente da temperatura. Se esta tiver variações, as abundâncias químicas serão subestimadas. Pelo contrário, as linhas de recombinação não têm este problema, pelo que deverão dar os valores corretos.

Para César Esteban, investigador do IAC e professor na Universidade de La Laguna, coautor do artigo, há um problema adicional: "Uma das principais dificuldades para quantificar a discrepância de abundância é que as linhas de recombinação dos elementos pesados são muito difíceis de observar, uma vez que são 10.000 vezes mais fracas do que as linhas excitadas por colisão produzidas pelo mesmo átomo.

Este desafio motivou a equipe de investigação a utilizar os maiores e mais avançados telescópios do mundo, entre eles o GTC (Gran Telescopio Canarias) no Observatório Roque de los Muchachos, em La Palma. "Após mais de 20 anos de observação e análise detalhada de um grande número de regiões HII, o nosso grupo no IAC obteve um conjunto de dados para a nossa Via Láctea e para outras galáxias de qualidade sem precedentes, o que tornou este resultado possível", explica Jorge García Rojas, outro investigador do IAC e coautor do artigo.

Graças à alta qualidade dos dados, a equipa conseguiu encaixar todas as peças do puzzle, para mostrar que as variações de temperatura estão, efetivamente, presentes, não em toda a nebulosa, mas concentradas nas zonas interiores mais altamente ionizadas. "De facto, descobrimos, para nossa surpresa, que a temperatura calculada a partir das linhas proibidas do azoto [NII] é representativa do valor médio para as zonas exteriores das nebulosas e pode, portanto, ser usada para calcular os valores corretos das abundâncias químicas", explica José Eduardo Méndez Delgado, investigador da Universidade de Heidelberg e primeiro autor do artigo. "A evidência observacional já estava disponível, era apenas necessário olhar para ela com a perspetiva correta", acrescentou.

Utilizando este novo cenário, a equipa de investigação conseguiu mostrar que a grande maioria dos estudos anteriores baseados na análise das linhas brilhantes excitadas por colisão subestimaram as abundâncias dos elementos pesados. "Além disso, as evidências sugerem que este efeito pode ser maior nos objetos menos evoluídos do Universo, como as galáxias distantes e jovens que estamos agora a descobrir com o Telescópio Espacial James Webb", comenta Kathryn Kreckel, investigadora da Universidade de Heidelberg e coautora do artigo.

O estudo propõe também uma série de relações que permitirão aos astrónomos fazer estimativas corretas dos elementos pesados sem a necessidade de observar as linhas de recombinação fracas. "Isto permitir-nos-á corrigir os dados disponíveis e fazer análises satisfatórias de futuras observações, que irão sem dúvida mudar muitas das ideias que tínhamos sobre a composição química do Universo", conclui Méndez Delgado, que terminou a sua tese de doutoramento no IAC em 2022.

Fonte: ccvalg.pt

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